Por Edson José Travassos Vidigal
Roteiro:
1.
Objetivo
2.
Introdução
3.
Algumas considerações sobre René
Descartes
4.
Algumas considerações sobre o
processo cognitivo de Descartes
5.
Algumas considerações finais
6.
Bibliografia
1- Objetivo
A proposta do presente
trabalho é levantar algumas considerações iniciais sobre o que seja a “verdade”
para René Descartes e qual o critério por ele utilizado a fim de distinguir a
“verdade” da “falsidade”.
Para tanto, nossa investigação será fundada na leitura da obra de
Descartes entitulada “Meditações metafísicas”, especialmente na meditação
terceira – “De Deus; que ele existe” e na meditação quarta – “Do verdadeiro e
do falso”.
Naturalmente, cabe frisar que se trata de trabalho de natureza
descritiva e, longe de pretender ser definitivo e completo, visa apenas uma
leitura introdutória à obra acima citada, tendo como ponto de vista a questão
apresentada: A verdade e o seu critério.
2- Introdução
Segundo Giovanni Reale, “Alfred N. Whitehead escreveu que “ a
história da filosofia moderna é a história do desenvolvimento do cartesianismo
em seu duplo aspecto, de idealismo e de mecanicismo”... Por seu turno, Bertrand
Russel afirmou que é justo considerar Descartes “como fundador da filosofia
moderna” ” [1].
De fato, não só Russel, mas quase a totalidade dos que se debruçam
sobre o estudo da modernidade, consideram Descartes como o seu fundador e como
centro intelectual de sua existência.
Descartes representou um marco, não só na história da filosofia, mas
também na história da humanidade [2].
Representou um divisor de águas entre o pensamento anterior e o contemporâneo [3] .
E, como tal, constitui-se em fonte relevante de estudos sem os quais não
podemos compreender a realidade em que vivemos, visto que toda ela (nossa era
moderna) deriva basicamente do pensamento cartesiano.
O idealismo e o mecanicismo de Descartes são os alicerces de nossa
cultura moderna. Seu pensamento, junto com o do empirismo inglês, desencadearam
as premissas necessárias às revoluções modernas. Descartes nos influenciou,
também, pelas suas proposições nas áreas da geometria, criando a geometria
analítica, e alavancando o desenvolvimento da matemática. Outras influências de
Descartes dizem respeito ao seu método matemático, à sua dúvida metódica e suas
“regras do método” (de análise, de evidência, de síntese e de verificação). Sua
referência maior e mais conhecida é sua formulação: “Cogito, ergo sum” [4] (o
“cogito” de Descartes), que se constitui na base de toda a sua filosofia.
Neste cenário, a questão da verdade não chama tanta atenção quanto na
obra de outros filósofos, que a encararam com maior destaque. Mas, ao contrário
das aparências, constitui-se em uma questão relevante ao pensamento de
Descartes, motivo pela qual nossa análise é pertinente.
3- Algumas
considerações sobre René Descartes
René Descartes nasceu
em 31 de março de 1596, durante o reinado de Henrique IV, em La Haye, na
Tourraine. Herdou da mãe uma tosse seca e uma cor pálida, que fez com que os
médicos fizessem a previsão de que ele morreria cedo.
Não lograda a expectativa de seus médicos, Descartes ingressou no
Colège de La Fleche, de padres jesuítas. Cursou as “humanidades”, estudou
grego, latim, poesias e fábulas antigas, lógica, física, metafísica,
matemática, geometria e álgebra.
Deixando o Colégio oito anos depois, renunciou aos livros e aos
estudos das letras.
Foi soldado, viajou e conheceu vários países, mudou-se várias vezes
e, aos 33 anos escolheu a Holanda como seu refúgio por um bom tempo. Estudou
muito, fez diversas experiências, produziu obras filosóficas importantes e, no
fim de sua vida quase que nômade, mudou-se para a Suécia por insistência da
Rainha Cristina. Não suportando o clima e as severas mudanças de hábito a que
foi submetido, não resistiu e encontrou
a morte em 11 de fevereiro de 1650.
Dentre as obras produzidas por Descartes, destacam-se para a
compreensão de seu pensamento filosófico: “Meditações metafísicas”, “Princípios
de filosofia”, “As paixões da Alma”, “Regras para a direção do espírito” e
“Discurso do método”.
4- Algumas
considerações sobre o processo cognitivo de Descartes
“ Estou certo de que sou uma
coisa que pensa; mas então não sei também o que se requer para deixar-me certo
de alguma coisa? Nesse primeiro conhecimento, não se encontra nada além de uma
clara e distinta percepção daquilo que conheço; a qual, na verdade, não seria
suficiente para assegurar-me de que é verdadeira, se um dia pudesse acontecer
que uma coisa que eu concebesse assim, clara e distintamente, viesse a ser falsa. E, portanto, parece-me que já posso
estabelecer como regra geral que as coisas que concebemos muito clara e muito
distintamente são todas verdadeiras.” [5]
(grifo nosso)
Apesar de manifestar quase uma certeza
acerca de sua “regra geral” sobre a verdade, logo em seguida Descartes declara
que, todavia, ele próprio admitiu anteriormente várias coisas como muito certas
e manifestas; coisas estas que reconheceu depois serem duvidosas e incertas.
Estas coisas eram a Terra, o céu, os astros e todas as outras coisas
que ele percebia por intermédio dos sentidos. Descartes argumenta que ele
concebia claramente que as idéias ou pensamentos dessas coisas se apresentavam
em seu espírito. E reconhece que estas idéias ainda existem nele. Entretanto,
havia outra coisa que ele acreditava perceber claramente, mas agora entende que
não a percebe verdadeiramente. Ele acreditava que existiam coisas fora de si das quais suas idéias procediam, e
que essas coisas eram totalmente semelhantes a suas idéias. Neste ponto é que
ele estava enganado, diz Descartes.
Descartes explica que,
se julgou depois ser possível duvidar dessas coisas é porque lhe vinha ao
espírito o pensamento de que talvez existisse algum Deus que lhe tivesse
atribuído uma natureza tal qual que ele se enganasse mesmo em relação às coisas
que lhe pareciam manifestas. Mas afirma que, mesmo que quem quer que seja o
engane, ninguém nunca poderá fazer com que ele nada seja enquanto pensar ser
alguma coisa, ou que algum dia seja verdadeiro que ele nunca tenha sido, sendo
verdadeiro que agora ele é.
Descartes nada mais
faz do que, apesar de reconhecer que pode duvidar de tudo, por receio de que
possa existir um “Deus maligno” enganador, afirmar a única certeza de que tem,
mesmo diante da existência de tal Deus. Nem mesmo esse Deus, se assim o for,
poderá negar a certeza de que Descartes existe enquanto pensa. Nem Deus, nem
ninguém mais.
Descartes nos diz que,
mesmo não tendo razões para crer que haja algum Deus enganador, deve examinar a
possibilidade de que existe um Deus, e, caso descubra que existe, deve
examinar, também, se ele pode ser enganador; pois sem o conhecimento dessas
duas verdades ele jamais poderá estar certo de coisa alguma [6].
Pode-se notar que
Descartes, neste momento, entende que, apesar de já ter uma certeza – a de que
existe enquanto pensa – não pode seguir
em frente rumo a outras certezas, sem que antes passe pela certeza da
existência de Deus, e de sua impossibilidade de ser enganador. Pois, caso o
contrário, ele nunca poderá negar a possibilidade de suas certezas estarem
sendo “forjadas” por um Deus enganador. Cabe ressaltar que, apesar disso, a sua
primeira certeza independe da vontade desse Deus e, por consequência, desde já
pode ser considerada uma certeza de fato.
A fim de continuar sua
pesquisa seguindo o método a que se propôs – o de passar por graus das noções
que encontrar primeiro em seu espírito para aquelas que nele poderá encontrar
depois – Descartes acha por bem dividir seus pensamentos por gênero para que
assim possa examinar em quais desses gêneros exista propriamente verdade ou
erro.
Para Descartes, existem três tipos de
pensamento: As “idéias”, que são como as imagens das coisas, as “vontades” e os
“juízos”.
As “idéias”, se forem consideradas somente
em si mesmas, sem relacioná-las com outras coisas, não podem ser falsas, pois
se imaginamos o que quer que seja, não é falso que realmente estejamos a
imaginar tal coisa.
Também as “vontades” não podem ser falsas,
pois ainda que desejemos coisas más, ou coisas que nem ao menos existam, mesmo
assim não podemos afirmar que seja falso o fato de estarmos a desejar tais
coisas.
Os “juízos” é que são dignos de
desconfiança. O pior erro que se pode encontrar é em julgar que as idéias que
estão em nós sejam semelhantes às coisas que nos são exteriores.
Sobre esse ponto, vale citar o comentário
de Homero Santiago [7]
:
“Descartes
distinguiu a idéia e o conteúdo da idéia, ou seja, o que é representado por
ela. Todos os pensamentos, todas as idéias são igualmente verdadeiros na medida
em que reenviam à coisa pensante; porém o juízo (quando a uma idéia é
acrescentada uma afirmação ou negação), pode ser verdadeiro ou falso; a questão
que se põe é saber com que direito se daria crédito ao juízo de que existem
coisas exteriores ao eu pensante.”
Sobre as idéias, Descartes afirma que
existem idéias inatas, que nasceram conosco, idéias estranhas, que vieram de
fora, e idéias por nós inventadas. Mas podemos nos persuadir de que todas essas
idéias sejam estranhas, ou que todas sejam inatas, ou, ainda, que todas sejam
inventadas, pois Descartes ainda não descobriu claramente a verdadeira origem
de cada uma. Porém, a preocupação de Descartes nesse momento é a de descobrir
quais as razões que o levam a acreditar que as idéias estranhas guardam
semelhança com os objetos por elas representados.
“A
primeira dessas razões é que me parece que isso é ensinado pela natureza;
e a segunda, que experimento em mim mesmo que essas idéias não dependem de
minha vontade, pois amiúde elas se apresentam a mim mau grado meu, como
agora, quer queira, quer não queira, sinto calor, e por causa disso me persuado
de que esse sentimento, ou seja, essa idéia do calor é produzida em mim por uma
coisa diferente de mim, a saber, pelo calor do fogo junto do qual me encontro.
E nada vejo que me pareça mais razoável do que julgar que essa coisa estranha
envia e imprime em mim mais sua semelhança do que qualquer outra coisa.” [8]
Descartes encontra duas razões para acreditar que as idéias sobre
objetos estranhos a ele guardam semelhança com tais objetos. Uma é o fato dele
acreditar que “isso é ensinado pela natureza” e a outra é o fato de que tais
idéias existem nele independente de sua vontade, ou seja, ele não interfere na
percepção dessas idéias de maneira consciente, elas vêm de outro lugar.
Descartes passa a examinar tais razões e
conclui, acerca da primeira, que, quando ele usa a palavra “natureza”,
refere-se a “uma certa inclinação que me
leva a acreditar nessa coisa, e não uma luz natural que me faça conhecer que é
verdadeira.” [9].
Ele próprio percebe que são duas coisas distintas. Uma é ter inclinação a
acreditar em algo. A outra é ter certeza deste algo, por intermédio de “uma luz
natural”. Descartes diz que não pode colocar em dúvida nada que a luz natural
lhe faça ver que é verdadeiro, até mesmo porque tal luz natural o mostrou que,
pelo fato dele duvidar, podia concluir que ele “era” [10].
Diz ainda que ele não tem nenhuma outra “potência” para distinguir o verdadeiro
do falso, que possa ensinar-lhe que o que essa luz natural lhe mostra como
verdadeiro não o seja. Por outro lado, a inclinação natural já o levou e ainda
pode levá-lo a erro. Ou seja, ele não acredita que a primeira razão seja
convincente.
Quanto à segunda razão, de que as idéias
devem vir de algum outro lugar, uma vez que não dependem de sua vontade, também
não a acha convincente, pois, assim como as inclinações acima referidas
encontram-se nele, mesmo que nem sempre concordem com a sua vontade, da mesma
forma pode haver uma outra faculdade ou potência própria para produzir essas
idéias sem a ajuda de nenhuma outra coisa exterior. Acrescenta que, quando
dorme, tais idéias se formam nele sem a ajuda dos objetos que representam. E,
por fim, afirma que, mesmo se ele concordasse que elas são causadas por esses
objetos, não é uma consequência necessária que devam ser semelhantes a eles.
Tudo isso o leva a reconhecer que não foi
por um juízo certo e premeditado, mas
por um cego e temerário impulso, que ele acreditou que existiam coisas fora de
si.
Em seguida, Descartes apresenta outra via
de investigação a fim de conhecer se, entre as coisas cujas idéias ele tem em
si, há algumas que existam fora dele.
Descartes alega que é coisa manifesta pela
“Luz natural” que deve haver tanta realidade na causa eficiente e total quanto
em seu efeito, pois: de onde o efeito tiraria a sua realidade, senão da causa?
E como essa causa poderia conferir realidade ao seu efeito, se não a tivesse em
si mesma? Daí conclui que o nada não pode gerar coisa alguma e que, o que é
mais perfeito não pode ser uma consequência do menos perfeito. Diz que essa
realidade não é somente clara e evidente nos efeitos que têm a realidade
chamada pelos filósofos de realidade formal, mas também nas idéias em que
somente são consideradas a realidade que eles denominam objetiva [11].
Descartes segue seu raciocínio afirmando
que “ toda a idéia, sendo obra do
espírito, sua natureza é tal que ela não requer de si nenhuma outra realidade
formal além daquela que recebe e retira do pensamento ou do espírito, do qual
ela é somente um modo, ou seja, uma maneira ou forma de pensar. Ora, a fim de
que uma idéia contenha uma tal realidade objetiva e não outra, ela deve, sem
dúvida, ter isso de alguma causa, na qual se encontra pelo menos tanta
realidade formal quanto essa idéia contém de realidade objetiva. Pois, se
supomos que se ache algo na idéia que não se encontre em sua causa, é preciso
então que ela tenha isso do nada; mas, por imperfeita que seja essa forma de
ser, pela qual uma coisa está objetivamente ou por representação no
entendimento por sua idéia, não se pode todavia assim dizer que essa forma e
essa maneira não sejam nada, nem, por consequência, que essa idéia tire sua
origem do nada.” [12]
Assim, como Homero Santiago anota: “ Importante especificação: o conteúdo
representativo de uma idéia não é um puro nada e por isso é necessário que haja
uma causa real da idéia; além do que, é necessário que a causa contenha em si
tudo, ou mais, do que aquilo que o efeito ( no caso, a idéia) possui.”[13]
Descartes segue dizendo que, ainda que se
possa conceber que uma idéia dê origem a outra idéia, isso não pode dar-se ao infinito, mas é preciso ao fim
chegar a uma primeira idéia, cuja causa seja como um padrão ou um original, na
qual toda a realidade e perfeição esteja contida formalmente e em efeito.
Assim, conclui, com a ajuda da “luz natural”, que as idéias são imagens que
podem facilmente decair da perfeição das coisas de que foram tiradas, mas que
jamais podem conter nada de maior ou mais perfeito.
E ele explica o porquê de todo esse
raciocínio: “...se a realidade objetiva
de alguma de minhas idéias é tal que eu conheça claramente que ela não está em
mim nem formal nem eminentemente, e que, por conseguinte, eu mesmo não possa
ser a causa, daí se segue, necessariamente, que não estou sozinho no meundo, mas
que há ainda alguma outra coisa que existe e que é a causa dessa idéia...” [14]
Após analisar diversas idéias na procura
de uma que possa ser tal que ele não seja a causa, Descartes chega apenas à
idéia de Deus, na qual é preciso considerar se há algo que não possa ter vindo
dele mesmo. Descartes diz que entende por Deus uma substância infinita, eterna,
imutável, independente, onisciente, onipotente, e pela qual ele mesmo e todas
as outras coisas que existem – se é que existem – foram criadas e produzidas. Estas
vantagens são tão grandes e tão eminentes que não podem ter sua origem só em
seu espírito. Por conseguinte, afirma que “é
preciso necessariamente concluir de tudo o que disse anteriormente que Deus
existe; pois, ainda que a idéia da substância esteja em mim, pelo próprio fato
de eu ser uma substância, eu não teria, contudo, a idéia de uma substância
infinita, eu que sou um ser finito, se ela não tivesse sido posta em mim por
alguma substância que fosse verdadeiramente infinita [15].
Descartes, assim, dá a primeira prova da
existência de Deus, aplicando o seu princípio de causalidade. Se tenho uma
idéia da qual não posso ser causa, essa idéia tem que ter por causa algo que é
estranho a mim, no caso, Deus.
Descartes afirma que encontra mais
realidade na substância infinita do que na finita, e por isso tem em si a noção
de “infinito” antes da de “finito”, ou seja, a noção de Deus se apresenta antes
a ele do que a noção de si mesmo. (“...e, portanto, que tenho de alguma forma
em mim primeiro a noção do infinito do que do finito, ou seja, de Deus, do que
de mim mesmo.” [16])
.[17]
E pergunta: “Pois como seria possível que eu pudesse conhecer que duvido e que
desejo, ou ainda, que me falta algo e que não sou totalmente perfeito, se não
tivesse em mim nenhuma idéia
de um ente mais perfeito do que o meu, por comparação ao qual eu conheceria os
defeitos de minha natureza?
Neste ponto, torna-se pertinente, mais uma
vez, a anotação de Homero Santiago:
“ Em
virtude de um descompasso ontológico entre o finito e o infinito, é impossível
que nosso intelecto, finito, possa compreender Deus, infinito; mesmo assim, o
pouco que se alcança de Deus é o bastante. Numa carta de maio de 1630,
Descartes lançara mão de uma metáfor modelar para explicar isso: Deus é autor
de todas as coisas, inclusive das verdades eternas, e “digo que o sei, e não
que o concebo nem que o compreendo; pois se pode saber que Deus é infinito e
onipotente, ainda que nossa alma, sendo finita, não o possa compreender nem
conceber; do mesmo modo que podemos muito bem tocar com as mãos uma montanha,
mas não a abraçar, como faríamos com uma árvore, ou qualquer outra coisa que
fosse, que não excedesse a grandeza de nossos braços; pois compreender é
abraçar pelo pensamento, mas, para saber uma coisa, basta tocá-la pelo
pensamento.”” [18]
Em seguida Descartes passa para a segunda prova que encontra sobre a
existência de Deus, qual seja, que “só do
fato de eu existir, e da idéia de um ser soberanamente perfeito (ou seja, de
Deus) existir em mim, a existência de Deus é demonstrada com muita
evidência.” [19]
Ao final da meditação terceira, conclui
observando que “a existência de Deus
consiste em que reconheço que não seria possível que minha natureza fosse tal
como é, ou seja, que eu tivessse em mim a idéia de um Deus, se Deus não
existisse verdadeiramente; esse mesmo Deus, digo, cuja idéia está em mim, ou
seja, que possui todas essas altas perfeições de que o nosso espírito bem pode
ter alguma idéia sem, no entanto, compreender todas elas, que não é sujeito
a nenhum defeito e nada tem de todas as coisas que assinalam alguma
imperfeição... Donde é assaz evidente que ele não pode ser enganador, porquanto
a luz natural nos ensina que o engano depende necessariamente de algum
defeito.”[20]
Deus existe. E é perfeito, assim não pode
ser enganador, pois o engano depende de algum defeito. Já que não existe um
Deus enganador, ele pode confiar na “luz natural” e ter seu critério de verdade
legitimado. Dessa forma podemos concluir que Descartes finalmente resolve a
questão proposta no início de sua meditação.
A busca de Descartes em sua meditação
quarta, pode ser sintetizada na seguinte pergunta: Se Deus é perfeito e não é
enganador, por que eu erro?
Descartes inicia sua quarta meditação
ponderando que há muito mais certeza no conhecimento das coisas relativas ao
espírito humano do que no conhecimento acerca das coisas corporais.
Segue repetindo que é impossível que
alguma vez Deus o engane, pois em toda a fraude e em todo o engano encontra-se
algum tipo de imperfeição. Em seguida, esclarelce que ele percebe em si uma
certa potência de julgar, que recebeu de Deus, como tudo o mais que tem. Diz
que quando pensa só em Deus, não descobre em si nenhuma causa de erro ou de
falsidade. Mas, voltando-se a seu espírito, percebe que é sujeito a uma
infinidade de erros. Descartes diz que ele está entre Deus e o nada, situado
entre o soberano ser e o não ser. Diz que o erro não é algo real que depende de
Deus, mas somente um defeito, de forma que ele não se engana pelo fato de Deus
ter lhe dado uma potência para esse fim, mas pelo fato da potência que Deus lhe
deu para discernir o verdadeiro é nele finita. O erro não é um defeito ou falta
de uma perfeição que não lhe é devida, mas sim uma privação de algum
conhecimento que ele devia possuir. Deus sempre quer o melhor, e o criou da
melhor forma possível. Mas mesmo assim Descartes é limitado, e existem coisas
cujas causas ultrapassam o alcance de
seu espírito. Mas por que Deus o fez assim então?
Descartes diz que não lhe parece que ele
possa investigar sem temeridade os fins impenetráveis de Deus. Ademais, diz
que, apesar de se considerar imperfeito, não devemos julgar a perfeição nas
coisas isoladamente, mas no conjunto de todas elas.
Assim, o erro não está em Deus. Está nele.
E qual é?
Descartes afirma que seus erros dependem
de duas causas: “da potência de conhecer
que existe em mim e da potência de eleger, ou então de meu livre-arbítrio, ou
seja, de meu entendimento e conjuntamente de minha vontade. Pois
só pelo entendimento eu nem asseguro nem nego coisa alguma, mas concebo
somente as idéias das coisas, que posso
assegurar ou negar.” [21]
Assim, o conhecimento depende da conjunção
da vontade com o entendimento. A vontade de conhecer e a potência de “assegurar
ou negar” algo. Porém ele entende que a causa do erro não pode vir nem da
vontade, que recebeu de Deus e é ampla e muito perfeita em sua espécie; nem do
entendimento, pois não temos outra potência a fim de conhecer nada, e assim, só
podemos conhecer por meio desta potência que Deus lhe deu.
Então se não é nem a vontade nem o
entendimento a causa do erro, pergunto novamente, qual é ?
“De onde então nascem meus erros? A saber, só do
fato de que, sendo a vontade muito mais ampla e mais extensa do que o
entendimento, não a contenho nos meus limites, mas a estendo também às coisas
que não entendo; sendo por si indiferente a elas, ela se desencaminha com muita
facilidade e escolhe o mal pelo bem, ou o falso pelo verdadeiro. O que faz que
me engane e que peque.” [22]
A causa do erro é a desproporção entre a
conjunção de vontade e entendimento. A
luz natural nos ensina que o conhecimento do entendimento sempre deve preceder
a determinação da vontade. E é no mau uso do livre-arbítrio que se encontra a
privação que constitui a forma do erro.
Devemos emitir juízo apenas sobre o que
podemos entender, somente sobre o que podemos conceber com clareza e distinção.
Mas não sabemos sobre o que é que podemos
ou não entender. Não sabemos até onde pode ir nosso conhecimento. Por isso
Descartes ensina o método pelo qual pode se manter longe do erro, que é manter
firmemente a resolução de jamais emitir juízo sobre as coisas cuja verdade não
é claramente conhecida.
Se tal regra for seguida, não pode ocorrer
erro, “...porque toda cencepção clara e
distinta é sem dúvida alguma coisa real e positiva e, portanto, não pode tirar
sua origem do nada, mas deve necessariamente ter Deus como seu autor; Deus,
digo, que sendo soberanamente perfeito não pode ser causa de nenhum erro; e;
por conseguinte, cumpre concluir que uma tal concepção ou um tal juízo e
verdadeiro.” [23]
Descartes, que já havia chegado à verdade de sua existência, à
verdade da existência de Deus e consequentemente ao critério utilizado para se
identificar a própria verdade, agora consegue, também, identificar o meio de se
chegar à verdade e não se deixar levar à falsidade. E assim termina sua
meditação quarta:
“Aliás,
não somente aprendi hoje o que devo evitar para não falhar, mas também o que
devo fazer para alcançar o conhecimento da verdade. Pois, certamente, eu o
alcançarei, se detiver suficientemente minha atenção sobre as coisas que
conceber perfeitamente, e se as separar das outras que só compreendo com
sonfusão e obscuridade. Ao que, doravante, cuidadosamente prestarei atenção.” [24]
5- Algumas
considerações finais
Como pudemos perceber,
Descartes, seguindo o caminho oposto ao da maioria dos outros filósofos a fim
de edificar seu conhecimento, parte não do mundo exterior e da experiência
sensível, mas de seu mundo interior, de seu “cogito”, da interioridade de seu
próprio pensamento. Ao invés de sair do mundo “real” sensível rumo ao seu conhecimento interior, sai de seu
conhecimento interior rumo ao mundo “real” sensível. Sua investigação não se
inicia no objeto cognoscível, mas antes, no próprio sujeito cognoscente. Ao
contrário dos outros filósofos que partem rumo ao conhecimento dos objetos
saindo de um porto seguro e considerado conhecido – o da certeza do sujeito
–Descartes e sua “dúvida cartesiana” avassaladora não podem nem ao menos
conceber de imediato tal ponto de partida; e faz questão de, antes de partir
rumo ao desconhecido, primeiro encontrar as coordenadas exatas de onde se
encontra. Encontrar a resposta à dúvida primeira que permeou seus pensamentos:
existe tal porto seguro? Existe o sujeito?
Daí se constitui o
idealismo cartesiano. E Descartes, com efeito, antes de qualquer outra coisa,
busca a afirmação do sujeito. Antes de se ter consciência do mundo, das coisas
sensíveis, dos próprios sentidos; antes de se ter consciência mesmo da existência
de Deus, é necessário ter consciência de si. E justo na dúvida, na própria
dúvida de sua existência é que ele percebe sua existência de fato. Na própria
pergunta já se encontra a sua resposta. Pergunta e resposta se fundem e,
iluminadas pela “luz natural” aparecem “clara e distintamente” ao seu espírito.
“Penso, logo existo” (ou “duvido, logo sou”). Esta é a primeira e única certeza
aceita por Descartes neste primeiro momento. E se constitui no alicerce de todo
o conhecimento que por ventura se alcance. É a premissa inicial para qualquer
outro conhecimento. Assim como sua existência é deduzida do pensamento, a
realidade será deduzida da idéia.
Neste ponto, Descartes já entende que, ao chegar à sua primeira
verdade, acabou por perceber o critério de verdade a ser seguido, o de ter algo
como “claro e disitinto”. Mais uma vez, ao contrário dos outros, Descartes
começa pelo fim. Não chega à natureza da verdade através de um caminho longo de
raciocínios, mas a percebe intuitivamente no primeiro momento. Os raciocínios
que se seguem são nada mais do que sua “dúvida metódica” sendo aplicada em si
mesmo a fim de afastar qualquer obscuridade do que a “luz natural” já o havia
mostrado e atribuído confiança.
A fim de sanar quaisquer obscuridades, inicia sua investigação sobre
o que é confiável, e o que não é, em seus pensamentos. Concluindo que o juízo é
a causa das obscuridades, principalmente os juízos acerca da relação entre as
idéias e a realidade, busca as razões que o levam a crer que as idéias condizem
com a realidade, ou mesmo que a realidade exista, pois todas as suas idéias
podem nascer nele mesmo. Entende que, para se ter certeza de que existe uma
realidade exterior, um caminho seguro é descobrir se existem idéias que tenham
origem fora de seu espírito. E assim, percorrendo o caminho demonstrado no
decorrer de nosso trabalho, Descartes descobre que existem idéias que tem
origem fora de seu espírito, e que, por consequência, ele não está sozinho, e
existe uma realidade exterior. Chega à certeza de que Deus existe. E, não só
existe, mais é perfeito, bom e infinito; e assim não pode ser enganador, pois
isso constituiria uma imperfeição, característica impossível de a Deus se
atribuir. E, nesse momento, Descartes, além de descobrir que realmente existe
uma realidade exterior a seu espírito, consegue ter eliminado todas as
obscuridades por ele levantadas acerca
de seu critério de verdade. Agora ele pode afirmar, piamente, que todas as
idéias claras e distintas se constituem em verdades.
É importante perceber o papel decisivo de Deus na teoria do
conhecimento de Descartes. É Deus quem fará a mediação entre o sujeito e os
objetos. Ele é a ponte que liga o interior ao exterior. É ele a primeira
certeza além da consciência de si. Certeza que, ao mesmo tempo que legitimará o
critério de verdade necessário a todo o processo de conhecimento,
constituir-se-á no próximo elo da cadeia cognoscente de Descartes, onde cada
certeza é fundada em uma certeza anterior, sucessivamente, até se chegar à
primeira certeza, que é, de fato, o “cogito” cartesiano, base de todo o seu
conhecimento.
Esse é o motivo pelo qual se faz tão importante para Descartes a
comprovação da existência de Deus. E esse é o motivo pelo qual nos debruçamos
em sua terceira meditação [25]
buscando a natureza da verdade. Apesar de, em um primeiro momento, parecer
estranho o início de nossa investigação, agora se faz “clara e evidente” a sua
real importância no desenvolvimento de nossa empresa.
Identificado o critério de verdade, não sem antes o colocar à prova;
Descartes, não satisfeito, coloca-se novamente em xeque, indagando o porquê do
fato de que erramos; haja vista que Deus é bom e dele não pode vir a
imperfeição, como demonstrado anteriormente. Esta é a questão enfrentada por
Descartes em sua quarta meditação; e, ao final desta, Descartes não só consegue
ratificar suas certezas anteriores acerca da verdade, como vai além, e acaba
por descobrir o método para se evitar que se chegue à falsidade.
Concluímos que para Descartes a verdade é o que se apresenta “clara e
distintamente” ao espírito. E mais, que para se alcançar o conhecimento da
verdade, é necessário deter suficientemente a atenção sobre todas as coisas que
forem concebidas perfeitamente, e as separar das outras coisas que só
compreendemos com confusão e obscuridade.
Assim, ao final de
nossa leitura das meditações “terceira” e “quarta” da obra “Meditações
metafísicas”, de René Descartes, consideramos concluída a nossa investigação e,
por conseguinte, satisfeita a nossa proposta inicial: a de levantar algumas considerações
iniciais sobre o que seja a “verdade” para René Descartes e qual o critério por
ele utilizado a fim de distinguir a “verdade” da “falsidade”.
6- Bibliografia
1-
DESCARTES, René, “Discurso do
método”, Guimarães Editores.
2-
DESCARTES, René, “Meditações
metafísicas”, Editora Martins Fontes.
3-
ROVIGHI, Sofia Vanni, “História
da filosofia moderna - da Revolução
científica a Hegel”, Edições Loyola.
4-
CORBISIER, Roland, “Introdução à
filosofia – Tomo II – Parte terceira – Cartesianismo”, Editora Civilização Brasileira.
5-
CORBISIER, Roland, “Enciclopédia
filosófica”, Editora Civilização Brasileira.
6-
JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES,
Danilo, “Dicionário básico de filosofia”, Jorge Zahar Editor.
7-
ABBAGNANO, Nicola, “Dicionário de
filosofia”, Editora Martins Fontes.
8-
HUISMAN, Denis, “Dicionário dos
filósofos”, Editora Martins Fontes.
9-
HESSEN, Johannes, “Teoria do
conhecimento”, Editora Armênio Amado.
10- REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario, “História da filosofia vol. II”,
Edições Paulinas.
11- MARTINS FILHO, Ives Gandra, “Manual esquemático de história da
filosofia”, Editora Ltr.
12- COTTINGHAM, John , “Dicionário Descartes”, Jorge Zahar Editor.
13- COTTINGHAM, John, “Descartes”, Editora Unesp.
14- GAUKROGER, Stephen, “Descartes – Uma biografia intelectual”, Editora
Uerj.
[1] Reale,
Giovanni, “História da Filosofia vol. II”, Editora Paulinas.
[2] Sua
influência, que a princípio poderia ser considerada na história da civilização
ocidental, atualmente pode ser considerada global, em face da hegemonia atual
do pensamento ocidental sobre todo o planeta.
[3] Apesar
de existirem os que pregam a tese de que atualmente vivemos em uma
“pós-modernidade”; sob nosso ponto de vista, o pensamento contemporâneo ainda é
essencialmente moderno, em que pese as novas concepções ditas “pós-modernas”,
inclusive a negação do mecanicismo de Descartes (negação infundada, pelo menos
até agora, haja vista a incoerência das idéias apresentadas neste sentido).
[4] “Penso,
logo sou”.
[5]
Meditações metafísicas, meditação terceira, 2.
[6] O que
Descartes busca, na verdade, é legitimar o critério de verdade por ele adotado.
[7] In
Descartes, René, “meditações metafísicas”, editora Martins Fontes, 1ª edição
[8]
“Meditações metafísicas”, meditação terceira, 11.
[9] “Meditações
metafísicas”, meditação terceira, 12.
[10] Podemos
daí intuir que a “luz natural” é que confere ao conhecimento a qualidade de ser
“claro e distinto”, ou seja, ser verdadeiro.
[11] Homero
Santiago (na obra “meditações metafísicas, já citada) explica: Realidade formal
é a realidade da própria coisa considerada como algo que existe atualmente; e
dessa opõe-se à realidade objetiva, referente à idéia da coisa... Conter algo
“formalmente” é conter a coisa realmente tal como ela é definida; conter
“eminentemente” é, sendo o continente superior à coisa contida, contê-la em
potência ou virtualmente, mas não formalmente. É desse modo que se diz que Deus
contém a extensão, embora seja ele um ser não extenso.
[12]
DESCARTES, René, “Meditações metafísicas”, terceira meditação, 17.
[13] In
DESCARTES, René, “Meditações metafísicas”, terceira meditação, 17.
[14]
DESCARTES, René, “Meditações metafísicas”, terceira meditação, 18.
[15] John
Locke posteriormente chegaria à conclusão de que o “infinito” nada mais é do
que uma idéia composta pela repetição eterna do finito, ou seja, uma construção
mental formada das idéias de substância finita, de repetição e de eternidade
(que é outra repetição). De tal forma que, ao contrário da conclusão de
Descartes, a idéia de “infinito” pode sim ter sua causa em algo “finito”.
[16]
DESCARTES, René, “Meditações metafísicas”, terceira meditação, 23.
[17]
Anteriormente ele não havia chegado à conclusão de que a primeira certeza,
mesmo antes da certeza de Deus, era a certeza de si? Agora ele chega à
conclusão que a idéia de Deus se apresenta a ele mesmo antes da própria idéia
que tem de si. Aparentemente, uma afirmação não exclui a outra, apesar de certa
complexidade nessas relações. O que ele quer dizer com isso é que, haja vista
que a idéia de infinito é maior do que a idéia de finito, aquela precede a
primeira, pois algo que não abarca tudo não pode ser causa de algo que é o
“tudo” em si. O infinito, por isso, tem mais realidade do que o finito, pois do
infinito é que o finito se origina. A nosso ver, tal raciocínio, além de
estranho e complexo, vai na contramão (como me parece ser hábito de Descartes)
com a idéia de evolução, onde o melhor sai do pior. De qualquer forma,
compreende-se logo em seguida o propósito da consideração: o de reconhecer que
nós, imperfeitos, derivamos de Deus, perfeito.
[18] In
DESCARTES, René, “Meditações metafísicas”, Editora Martins Fontes, 1ª edição,
pg. 74.
[19]
DESCARTES, René, “Meditações metafísicas”, terceira meditação, 37.
[20]
DESCARTES, René, “Meditações metafísicas”, terceira meditação, 40 e 41.
[21]
DESCARTES, René, “Meditações metafísicas”, quarta meditação, 9.
[22] DESCARTES,
René, “Meditações metafísicas”, quarta meditação, 10.
[23]
DESCARTES, René, “Meditações metafísicas”, quarta meditação, 16.
[24]
DESCARTES, René, “Meditações metafísicas”, quarta meditação, 17.
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