De que
adianta avistar a cor rubra e a aparência delicada de uma rosa se dela não
pudermos extrair o seu perfume doce ao olfato, e o beijo amargo de seus
espinhos ao tato? De que adianta a vida aos pedaços, esquartejada e mutilada em
fragmentos desconectados e precariamente organizados em um gigantesco mosaico
que só se vê inteiro ao longe, mas de perto se percebe apenas partes, que pela
limitação de nossa percepção moderna, nos leva à necessidade de memorizar cada
uma dessas infinitas partes, pedaço por pedaço, numa revoada louca de
informações que, sem um norte, se perdem nas nuvens longe de chegar ao ponto no
qual permitiria que montássemos esse imenso quebra-cabeça de nosso conhecimento
e de nossa visão?
“As
flores de plástico não morrem” [1], dizia Arnaldo
Antunes. E estava implícito: e também não vivem. A vida não é vida sem a morte.
De que adianta uma vida pela metade, incompleta, amputada? Para que um início
faça sentido, é necessário que haja um fim que faça sentido também. Sem o frio
e a solidão da escuridão, não levantaríamos de ânimos renovados com a alegria e
o conforto de um novo dia ensolarado. Contrastes são dois aspectos da mesma
realidade.
Dois
ou três irmãos de Zaratustra [2] teriam dito que
no início era o “Caos”. O “Uno primordial”. Mas um dia, Apolo veio ao mundo
como o “cosmético” do Caos e trouxe a ordem. Onde não existia o feio, também
não existia o bonito. Mas a ordem criou a beleza, o tempo, o espaço, as
realidades, os opostos, a dualidade resultante da divisão do Uno. E da
dualidade surgiram dualidades, e delas, outras dualidades. E a ordem foi se
disseminando em todas as direções, como uma peste negra apocalíptica que,
insaciável, consumiria tudo o que tocasse à medida que dividia, que limitava, à
medida que mostrava onde algo deveria começar e onde deveria acabar. E a cada
novo movimento a ordem se instalava. E o
que era eterno e infinito foi sendo coberto por uma máscara de finitude. E esse
foi o nascimento do cosmos. A estética universal. A forma de toda a matéria.
E em
algum momento confuso dessa insólita aventura; seja antes, durante, ou depois,
por um acaso da perplexidade, surgiu uma insignificância efêmera frente à
infinitude e à eternidade do todo. E a essa anomalia coube chamar-se “homens”.
O que
eles não sabiam é que, como nasceram da divisão e da finitude, eles também haveriam
de ser divididos e finitos. Contam que houve um tempo, antes que houvessem
percebido tal verdade, que eles, ainda não dotados de memória, desconhecendo
qualquer outra coisa além do momento, como quaisquer outros animais frutos de
anomalias semelhantes, foram felizes. Nasceram, viveram e morreram, de acordo
com a sua natureza. De acordo com a lei universal da finitude do que é
ordenado. A lei universal da mudança, do eterno devir.
Acontece
que, em algum momento, talvez por influência de algum demônio, eles adquiriram
memória. E com a repetição de percepções, passaram a desenvolver uma noção de
percepção das coisas em seu redor um tanto quanto diferente da que
anteriormente tinham. E criaram relações entre os movimentos em sua volta. E
criaram relações de causa e efeito entre os eventos. E perceberam ou inventaram
uma noção a que se chamou de tempo. E a partir daí nasceram o passado, o
presente e o futuro. E a percepção das relações entre eles. E o passado começou
a servir de base para o presente, na tentativa de se controlar o futuro. E
nesse momento, amaldiçoados pelo pecado cometido, o de se opor aos deuses, ao
destino e suas leis naturais, passaram a conhecer o sofrimento. Passaram a
experimentar a finitude, a ausência, a falta, a limitação, a dependência e a
imperfeição; todas filhas da mais sensual e provocante das tentações: a
consciência de si, fruta atraente por seu aspecto opulento, mas que guarda em
seu âmago a angústia como o mais ardiloso fel. E o que antes lhes era dado
agora deveria ser cultivado com o suor de suas existências.
Que
são verdades senão encadeamentos de palavras? Proposições que visam a
comunicação de entendimentos? Mais do que as palavras, nos são valiosas as
relações. E um mito nos diz mais do que infinitas verdades, pois nos fala além
de nossas vãs percepções lógicas. A razão nos prega peças que são motivos de
chacotas para os deuses.
Tenha
ou não sido assim que aconteceu, o fato é que um dia nasceu a cultura.
A
tragédia nos conta que Édipo, na tentativa de fugir de seu destino, acabou por
matar seu pai a caminho de Tebas e, após decifrar o enigma da esfinge
demonstrando saber a natureza do homem, ganhou a recompensa de desposar a
própria mãe, que por ele foi subjugada na condição de esposa e que, por ele
inseminada, gerou frutos. Frutos da profanação do sagrado que só trouxeram a
desgraça e a maldição para ele e para todo o seu reino. Reino este que fora,
apesar de sem dolo, usurpado indevidamente de seu pai. E tal maldição só
cessaria quando o verdadeiro culpado pela morte de seu pai fosse encontrado. A
maldição só cessou quando Édipo, após longa investigação, descobriu ser ele
próprio o causador de sua angústia e da ruína de seu reino. Aplicando-se a pena
por ele próprio estipulada, se exilou de Tebas logo depois que, por ato
próprio, tornou-se cego, como o vidente Tirésias. Édipo então enxergou não mais
o que aparentava ser, mas o que era de fato.
Entendeu o seu destino e se entregou à fortuna, desta vez, aceitando a
condição de dependente, passando a viver não mais como senhor de sua vontade,
mas conduzido pela vontade de seu senhor. Passou a viver pedindo pouco, e
recebendo menos ainda. Mas, agora, livre da angústia e da incerteza, e pronto
para aceitar o destino e suas vontades com naturalidade.
Na
cultura, o homem encontrou uma tentativa de se preservar, de controlar o seu
destino, suas ações, de controlar o meio no qual vive. De sobrepujar a mãe
natureza e cultivar os seus frutos. Na cultura, o homem encontrou uma tentativa
de driblar sua condição de imperfeito, de incompleto, de finito. Na cultura o
homem encontrou uma tentativa de se perpetuar através de seus descendentes.
Mas é
a mesma cultura que torna os homens infelizes, sofredores, angustiados pela
consciência de si, pela consciência de sua condição de homem e de sua natureza
finita e incompleta. É através da cultura que novas gerações adquirem a mesma
consciência de si que os seus antepassados tinham adquirido por sua vez. E essa
herança vem em um pacote fechado, com todas as desvantagens e todas as
desvantagens. Sim, repito, todas as desvantagens e todas as desvantagens. Como
na caixa de Pandora, onde estavam contidas todas as desgraças e, bem lá no
fundo, escondidinha, a maior desgraça de todas: A esperança! Sim, a maior
desgraça de todas, pois, ao contrário do que pode parecer, ela é fundamental
para que as demais desgraças funcionem. Sem a esperança, as outras desgraças
não fazem efeito. Não somos capazes nem de vê-las. A esperança é a lente pela
qual conseguimos ampliar todas as desgraças até chegar a senti-las. É o espelho
mágico que usamos para nos ver desgraçados.
Como o
pensamento do filósofo francês André Comte-Sponville nos mostra [3], a infelicidade
consiste não na falta de algo, mas em se projetar expectativas quanto a uma
“completude” que nunca será alcançada. Se somos finitos, imperfeitos e
incompletos por natureza, nunca saciaremos nenhuma sede por algo que nos falta.
E a necessidade é derivada de algo que nos falta. Assim, se não aceitarmos o
fato de que somos incompletos, finitos, e que sempre nos faltará algo, nunca
seremos felizes. A infelicidade sempre surgirá
da frustração. Da expectativa de alcançar o que é inalcançável. Do
desejo. Da “esperança”. A “esperança” é uma espera constante, infinita, eterna,
maior do que nós, que somos finitos. É dela que nasce nossa infelicidade. E se
analisarmos bem, ela nada mais é do que um espelho disforme pelo qual vemos a
nossa condição humana. Ao vermos nosso reflexo nele, ficamos perplexos e
aterrorizados frente a tal deformidade incompleta e medonha em contraste imenso
à perfeição e beleza da natureza infinita que vemos a nosso redor. Tal imagem
nos causa tamanho temor e angústia que não podemos suportar e nos leva à mais
completa infelicidade, ou ao completo niilismo. Mas se trocarmos esse espelho
moderno por um espelho antigo, fora de moda, que outrora usavam, o da
“desesperança”, alcançamos a felicidade,
pois neste espelho o contraste das imagens se mistura quase a ponto de
confundir nossa imagem imperfeita focada com o fundo perfeito desfocado. Assim,
sem sermos de fato perfeitos e ilimitados, e sem abrir mão de nos percebermos a
si próprios como individualidades independentes do “fundo”, experimentamos a
sensação do caótico, do infinito, do “uno”, tão necessárias à saciedade de
nossa sede, sem, contudo, abrir mão de nossa identidade.
Nietzsche
nos fala de um mundo onde o real é mascarado por uma aparência necessária à
vida. O que Apolo fez foi tornar belo tudo o que aparece, todo o universo dos
fenômenos, a fim de ser possível a vida.
Mas
Apolo não é o único Deus pelo qual a natureza se move. Existe também o Deus
oposto, o que quer a volta ao “uno primordial”, a desconstrução da ordem, das
individualidades: o Deus Dionísio. E como Apolo comanda a “estética” dos
fenômenos, Dionísio comanda a “estética” da realidade em si. Tais Deuses se
combatem tanto na natureza como um todo quanto em suas partes. E nos homens não
é diferente.
Dessa
forma, se o “Deus da destruição” Dionísio se apossar de nossas almas,
experimentaremos a ausência de memória, o esquecimento de tudo, inclusive da
própria consciência de si, a total reunião com a natureza, a desintegração do
eu, a perda de identidade, a falta de limitação, a infinitude e a eternidade.
Se tal
apropriação da alma for momentânea, no retorno à consciência de si e à identidade,
experimentaremos o pesar, o desgosto pela existência, a falta, a finitude e
todas as demais desgraças delas provenientes em um grau infinitamente maior em
face do choque do contraste. E isso é um perigo imenso, não só para cada um,
mas para a humanidade como um todo.
E os
gregos antigos perceberam isso, e para escapar do pessimismo frente à realidade
de fato, que é a finitude humana, seguiram o impulso apolíneo e criaram um
mundo de beleza, um mundo estético, um mundo de aparências, um mundo coberto
por um manto ornamentado pelo qual não se consegue ver o terror que está por
baixo. E mais, criaram um meio pelo qual, ao invés de negar e rejeitar
Dionísio, corromperam-no e o integraram a um ato dominado por Apolo: A arte.
Assim, Dionísio tornou-se escravo da ordem, na medida em que, estando em seu
meio, Apolo tem maior controle da situação por meio de suas ilusões de beleza,
não deixando Dionísio dominar a situação com todo o seu poder excessivo de
destruição. Dessa forma, os gregos, por meio da arte, da tragédia, libertaram o
seu lado irracional, de destruição e o mantiveram sobre o controle, com a ajuda
de Apolo.
Dessa
forma evitavam o que acontece hoje, que é a alternância entre os dois Deuses no
domínio de nossas almas. Na tragédia grega, Dionísio e Apolo se faziam
presentes em nossas almas simultaneamente, de maneira que Apolo, por estar em
seu meio, a arte, mantinha Dionísio sobre controle.
O que
acontecia de fato era a possibilidade da união entre a aparência e a essência.
Entre a “Forma” e a “matéria”. Dessa maneira o grego antigo participava das
duas realidades simultaneamente, e isso tornava mais fácil a aceitação do
sofrimento, vez que apresentado sob o manto de beleza de Apolo, ou seja, de
forma mais amena.
Atualmente,
a cultura perdeu a noção da existência de Dionísio e da necessidade de sua
vivência simultânea com a de Apolo. A cultura se perdeu rumo a um extremo. Do
ponto eqüidistante que estava entre a morada de Dionísio e a de Apolo, olhou
para cima e, visando se estabelecer definitivamente nos belos jardins de Apolo,
escalou, subiu rumo ao céu, rumo ao mundo ideal, à verdade pura e bela, à
iluminação do bem. Seguiu sem olhar pra trás por um caminho tortuoso, árduo,
penoso, sacrificado e demorado.
Muito
tempo depois, está chegando a um limite, à beira do precipício que a conduzirá,
em um suspiro, ao abismo do logos primordial de Dionísio e sua conseqüente
perda de existência total.
O
caminho dos extremos leva à masmorra da ignorância, disse um outro irmão de
Zaratustra. E é lá, nessa masmorra, que a cultura moderna se encontra, acuada,
assustada, desprotegida e temerosa de seu destino, que já não consegue mais
controlar. E naquele refúgio-prisão ela passa os dias alternando seu olhar
entre a maior das belezas que a aparência pode oferecer, e a pior das desgraças
que a realidade pode conceber. Tenta passar a maior parte do tempo se iludindo,
forçando-se a se voltar para a janela que oferece vista aos belos jardins de
Apolo. Mas não consegue ceder ao desconforto de sua consciência, e logo corre a
debruçar-se sobre a janela que lhe mostra ainda mais nitidamente a realidade do
abismo que o espera.
A
cultura moderna, com medo de escorregar rumo ao precipício da realidade, se
agarra com todas as forças a uma história “decoradora”. Uma história que lhe
serve de amparo contra a sua condição real. Uma história que se funda na forma,
na aparência, não na matéria. Uma história que coleciona objetos e se livra da
relação que estes objetos têm com a vida. Uma história que não lhe impulsiona a
seguir em frente, mas lhe serve para continuar onde está, agarrada aos grilhões
que a salvam da verdade.
Essa
“cultura histórica” tem por finalidade esvaziar o homem. Empanturrá-lo com
informações inúteis, desinformações, peças de museu, detalhes, nomes, datas e
outras coleções de artifícios que lhe causem tamanha indigestão que o façam
vomitar, em nojo agonizante, um bolo
alimentar tal que contenha, além de todas as tantas futilidades com que foi
“engordado”, tudo o que por ventura tenha ingerido que lhe possa servir para sair de sua prisão
e levar a cultura moderna a uma outra direção.
Assim,
os homens modernos se prendem a um estudo infrutífero, inútil. Inerme e inerte
frente aos ideais de sua cultura. Até qualquer estudo crítico que por ventura
apareça não é nada mais do que a crítica pela crítica, sem em nada acrescentar.
E o passado é posto em julgamento por quem nem ao menos constrói um presente,
quanto mais um futuro. Os homens modernos não são viris o suficiente para
sobrepujar sua cultura perdida em devaneios. Não têm coragem para acreditar em
si mesmos e assumirem o papel ativo que deveriam.
Mas a
cultura moderna não quer homens corajosos e viris. Ela quer homens medrosos,
acuados, fáceis de controlar e que pensem o mínimo possível, a fim de que reste
espaço suficiente em suas almas para que sejam, de forma mais rápida e
fácil, adestrados para cumprir seus
papéis sociais. Papéis que ajudem a manutenção do que está do jeito que está.
A
historia se constitui em amparo para a cultura moderna na medida em que, com o
culto do passado, faz com que não haja tempo para o cultivo do futuro. E,
assim, não surjam frutos de uma nova plantação, de uma nova cultura.
Uma
nova cultura capaz de criar homens que tenham consciência de sua situação real.
Homens corajosos que não se borrem de medo da realidade se escondendo por baixo
da saia da ilusão. Homens que não façam da aparência sua única verdade. Homens
que aceitem a consciência plena de si e, uma vez mais, mantenham Dionísio por
perto, sob custódia de Apolo, a fim de que o equilíbrio seja restaurado, e a
humanidade volte a reencontrar sua força e nela se sustente, ao contrário dessa
cultura moderna atual, que se funda “num falso sentimento de superioridade que
esvazia tudo o que é grande e belo em outras épocas e outros povos e só vê o
que existe de vil no outro ou no que nos antecede.” [4]
E
assim passam os dias. E nossa cultura segue em perdida e dissimulada fuga,
saindo de nenhum lugar rumo a lugar nenhum. Mas e a realidade? A verdadeira
consciência de si?
A
realidade será sempre uma estranha. Um fantasma a aterrorizar os pesadelos
sombrios de uma existência fictícia e sem sentido.
Sempre na ativa!
Bibliografia
1- NIETZSCHE, Friedrich, “Considerações
Intempestivas”, Livraria Martins Fontes.
2- NIETZSCHE, Friedrich, “A filosofia na
idade trágica dos gregos”, Edições 70.
3- NIETZSCHE, Friedrich, “O nascimento da
Tragédia ou Helenismo e Pessimismo”, Companhia das letras.
4- MACHADO, Roberto, “Nietzsche e a
verdade”, Editora Graal.
5- BOEIRA, Nelson, “Nietzsche – Filosofia
passo a passo”, Jorge Zahar editor.
6- STRATHERN, Paul, “Nietzsche em 90
minutos”, Jorge Zahar Editor.
7- COMTE-SPONNVILLE, André, “Tratado do
Desespero e da Beatitude”, Martins Fontes.
8- COMTE-SPONNVILLE, André, “A felicidade,
desesperadamente”, Martins Fontes.
9- FEITOSA, Charles, BARRENECHEA, Miguel,
PINHEIRO, Paulo (organizadores), “A fidelidade à terra – arte, natureza e
política: Assim falou Nietzsche IV”, DP&A editora.
10- DIAS, Rosa Maria, “Nietzsche educador”,
editora scipione.
[1] verso
da música “Flores” da banda “Titãs”.
[2] Irmãos
estes que, ao que parece, acabaram
desconhecidos, anônimos, relegados pela história!
[3] Ver “A
felicidade, desesperadamente” e “Tratado do desespero e da Beatitude”, ambas
obras do autor publicadas no Brasil pela editora Martins Fontes.
[4] GUÉRON,
Rodrigo, “Como Nietzsche compreende “história” e a descrição do “século da
história””, In “A fidelidade à terra – arte, natureza e política: Assim falou
Nietzsche IV”, DP&A Editora.
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