terça-feira, 3 de setembro de 2013

SOBRE UMA QUESTÃO ONTOLÓGICA


O que é a filosofia?

Eis mais um problema que nos aflige há séculos. Problema que preocupou e preocupa filósofos das mais variadas escolas. Filósofos que nos brindaram com as mais variadas e até curiosas soluções. Diria que algumas até um tanto inusitadas (para não dizer constrangedoras) como a apresentada por um professor, autor de um livro didático contemporâneo onde responde tal indagação afirmando que leciona filosofia há mais de vinte anos e ainda não sabe tal resposta[1]


Pergunto eu: Como se leciona algo que não se sabe o que é? Pode parecer uma piada, mas é fato real a existência de tais afirmações, que seguem a mesma linha de outras, que dizem que os problemas filosóficos devem ser vistos como algo que não demanda solução final, mas, apenas, soluções momentâneas que sempre deixem espaço para a continuidade do eterno joguinho divertido chamado de “processo dialético”. E me parece incrível que tais criaturas encham o peito para defender tais idéias, de posse de um sorriso sarcástico de canto de boca e o olhar de superioridade frente à pobre e ignorante audiência que lhe esteja prestando homenagem com a sua perplexa atenção.[2]


E retorno à pergunta: Mas o que é, então, a filosofia?


Tenho também uma resposta criativa e original, que pela excentricidade pode até me render os louros da fama. Poderia tecê-la em vocabulário obtuso, com termos técnicos criados a partir de releituras dos escolásticos em conjunção com as mais modernas teorias quânticas ou analíticas, apresentadas em discurso indireto, cheio de curvas tortuosas, túneis e viadutos emaranhados em seqüências de idéias e inversões sintáticas que fariam o velho Ioda[3] se contorcer de inveja em seu túmulo.


Poderia fazer citações comparativas de filósofos conceituados em nova perspectiva desvirtuada a fim de corroborar meu texto e assim aliar a escuridão, o lodo e a sensação de asfixia (características de ambientes bem profundos) com o recurso à autoridade, o que me garantiria a fama de “culto” e “profundo”, apesar de, no fim das contas, não ter sido entendido por ninguém. Mas afinal, por acaso alguém diria que o rei está nu?[4]


Mas voltemos à minha resposta. Abrindo mão da fama de “culto” e “profundo” com vistas a ser considerado “pop”, o que está mais na moda[5], minha resposta é simples e direta.


Respondo: Não é problema meu!


Boa a resposta, não?

A fim de clarear a mente e ampliar a visão, pergunto: A metodologia científica pode avaliar a si própria com seus próprios métodos, que estão justamente sendo postos em questão? Constitui problema científico responder o que é a ciência? Constitui problema matemático descobrir o que é a matemática? Não parece claro que não se constitui um problema filosófico verificar o que seja a própria filosofia? 

Poderiam dizer que todas estas questões e outras são objetos da filosofia. A filosofia da ciência analisaria o que é a ciência, a filosofia da matemática analisaria o que é a matemática, a filosofia da metodologia científica analisaria o método científico e as outras demais “filosofias” analisariam as demais formas de conhecimento.

Lindo, não? A filosofia é a palavra final que julga todas as demais disciplinas e está acima de tudo, vivendo em um estado absoluto fruto de origem divina, ou, em outras palavras, direito de sangue, hereditário, incontestável e infinito. A filosofia está acima do bem e do mal e suas palavras são na verdade as palavras de Deus, de quem ela é representante direto na terra.

Parece familiar este discurso, mas está fora de moda. A filosofia não pode avaliar a si mesma. Todos os demais ramos do conhecimento são analisados por um ente externo a eles, e não vejo por que nem como a filosofia seria uma exceção.

Este é um argumento. Mas, com efeito, existe pelo menos outro mais eminente: O que vem a ser a filosofia é um problema filológico, não filosófico, assim como todas as demais questões ditas “ontológicas”. “Filosofia” é uma palavra, e como tal, representa algo. Posso chamar um cavalo de filosofia, um prato, qualquer coisa. A palavra “filosofia” significará qualquer coisa que seja acordada entre os usuários da linguagem da qual esta palavra faz parte. Os filósofos podem passar a eternidade discutindo o que seja a filosofia, mas na verdade, cada um deles não está fazendo outra coisa do que tentar imprimir a esta palavra um significado de sua preferência. E qual deles estará certo? O que imprimir o significado que mais agradar e conseguir o consenso exigido para o acordo. E quem julgará isso? A filosofia? Claro que não.[6]

Uma solução poderia ser buscar a origem etimológica da palavra, o seu significado original. Mas a linguagem não é um ente dinâmico? Na verdade, qualquer discussão que se possa tomar de maneira responsável pelo tema, seria uma discussão no âmbito da linguagem, e não seria a filosofia a disciplina específica para tanto. Ela pode até colaborar com considerações, reflexões e argumentos, mas nunca no sentido de descobrir o que é a filosofia, mas no sentido de definir, por convenção, o que será chamado pela palavra “filosofia”.

De qualquer forma, não será ela quem definirá tal palavra, da mesma forma que não é nenhum dicionário que define o que seja nenhuma palavra. Eles apenas “colecionam” significados atribuídos a cada palavra. E nota-se que são diversos os significados atribuídos a cada palavra, e é tendência o aumento de seu número com o passar do tempo, além da modificação de significados existentes e mesmo a morte de alguns já não utilizados.

Posso estar falando alguma besteira. E se estiver, isso decorre do fato de estar eu adentrando em terreno alheio.

Para os que não gostaram de minha resposta, apesar de excêntrica e original, posso dar outra: “Filosofia” é uma palavra, um termo de linguagem significante, que representa um significado. Tal significado não é uma “essência” que vive no mundo das idéias, incorruptível, perene, perfeita, linda, soberana e somente alcançável pelos mais exaustivos esforços empregados através de metodologia árdua, seguindo passos cautelosos, conquistando sucessivos graus de conhecimento, sendo, apesar de tudo, para poucos escolhidos. Tal significado (como todos os significados) é definido por convenção. Tal convenção, de maneira absoluta, é impossível, levando em consideração o caráter dinâmico da linguagem e a impossibilidade de consenso.

Assim, como os significantes se destinam precipuamente à comunicação, considero de bom senso a convenção entre as partes, a cada comunicação, dos significantes e seus respectivos significados, a fim de que seja possível o verdadeiro objetivo do discurso: a comunicação de dados.[7] Tal objetivo será alcançado na medida em que a mensagem comunicada chegue a seu destino de maneira fiel à intenção de quem comunica. E isso nunca será conseguido com o uso de significantes soltos ao vento, sem o necessário lastro com a convenção, fundamental à perfeita relação significante-significado, imprescindível para a comunicação de idéias.

É claro que tal convenção inicial, entre as partes, não é necessária a todos os significantes do discurso (até porque tal convenção para a maioria dos termos já é feita por ocasião do aprendizado de cada linguagem), mas apenas àqueles que causam polêmica por sua complexidade, importância e falta de consenso.
 
Ocorrendo, durante a comunicação, dúvidas sobre o discurso derivadas de um significante, não cabe a celeuma a fim de unificar um significado pretendido por uma parte, e, sim, a convenção apenas destinada a transmissão de idéias, pois o que importa nas definições é o conjunto dos conceitos que ela engloba. O significante para tais conceitos pode ser qualquer um convencionado, no caso de não haver consenso em torno de um específico que esteja gerando a polêmica. Ficar discutindo quem tem razão sobre o significado de um significante é perda e tempo, e não trás benefício algum para a comunicação, ou para a prática da ação, mas, apenas, para a vaidade e a insegurança dos que pretendem impor sua vontade sobre a dos outros, pois, no fim das contas, uma definição não tem caráter objetivo, mas subjetivo.


[1] Meu conselho seria no sentido de que ele poupasse seu tempo (e principalmente o de seus alunos) e desistisse logo de tal empresa.

[2] Essas respostas me causam outra pergunta, que deixo em aberto para a resposta íntima de cada um: Por que alguém perderia seu tempo com uma coisa que não se sabe o que é e não chega a lugar nenhum? Parece uma pintura surreal!
[3] Personagem da série de cinema “Star Wars”, Ioda é o Veterano mestre Jedi que lidera aqueles guerreiros da luz com destreza e sabedoria, mas apesar de ter mais de 9 séculos de idade, ainda não aprendeu a estruturar os períodos com sujeito, aposto, predicado, objeto direto, adjuntos adverbiais e nominais, dentre outros termos, em ordem correta.
[4] Acaba de me ocorrer que me seria útil, também, deixar em aberto alguma questão, a fim de me garantir a fama de “democrático” e “dialético”. E poderia também lançar mão em algum recurso “desconstrutivo”  para me alçar ao patamar dos modernos “pós-modernos”.
[5] Quem você preferiria ser, o Papa João Paulo II ou o seu sucessor, o Papa Bento XVI?
[6] Quem é a filosofia?
[7]
A concepção de definição atualmente em uso acaba por transformar o discurso não em comunicação, mas em convencimento. Ou seja, Ao invés de se procurar o consenso, fruto da soma de dados, procura-se impor a sua concepção, de maneira unilateral, apesar de tal prática se esconder atrás do manto lindo da “democracia” e da “dialética”. A dialética, na verdade, não é uma prática “democrática”, na acepção populista da palavra, pois não é consensual, e por isso, não é soma de partes. A dialética é “democrática” no sentido prático da palavra, o de revezar pequenas partes no poder, que se impõem ao todo restante. Hoje, o meu ponto de vista é o que é certo. Amanhã outro ponto de vista é o que será certo (pode até ser outro ponto de vista meu, também). A dialética, como a democracia, é uma forma de imposição de minorias a maiorias.

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